Na aldeia de Nova Jutaí, todos ouviram conselhos dos caciques e agentes de saúde: usem máscara, mantenham distância, nada de reuniões. Imagino o que teria acontecido se as condições fossem iguais às do resto do Brasil.
Estive no curso superior do imponente rio Solimões,
onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru. Visitei várias comunidades
indígenas. Queria ver como as aldeias estão se saindo durante a pandemia de coronavírus.
Uma coisa me chamou atenção: aldeias nas quais a
cultura indígena está intacta e viva enfrentaram a pandemia melhor que outras.
As pessoas se uniram para manter o vírus longe, não teve brigas nem sabotagem.
Um bom exemplo disso é a aldeia de Nova Jutaí, que fica no rio Igarapé de
Belém, na Terra Indígena Évare I. De Belém do Solimões (AM), a cidade maior
mais próxima, leva duas horas de barco para chegar até ali.
Nova Jutaí tem quase 100 moradores. Alguns deles
estavam doentes, incluindo o residente mais velho, um homem de 71 anos. Mas
ninguém morreu, e o vírus não se espalhou na aldeia. Por quê? Porque todos aqui
ouviram os conselhos dos caciques, pajés e agentes da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (Sesai): usem máscara, mantenham distância, nada de reuniões, e
só peguem o barco para fazer algo na cidade em casos muito urgentes.
O povo de Nova Jutaí é tikuna e fala apenas sua língua
indígena. Eles vivem da pesca, da caça e do cultivo de banana, mandioca, açaí e
cupuaçu. Também fabricam vassouras e cestos de materiais naturais. Várias
famílias recebem Bolsa Família.
Existe uma grande coesão social na aldeia. Isso também
tem a ver com o fato de haver uma pequena igreja católica no local, mas nenhum
templo evangélico. Os monges capuchinhos, que de vez em quando vêm de Belém do
Solimões para celebrar os serviços religiosos, incentivam o povo tikuna a
preservar sua cultura. Dizem que sua língua, suas vestes tradicionais, sua
comida, seus remédios, suas festas, sua música e suas danças são boas e devem
ser motivo de orgulho. As missas são celebradas no idioma tikuna, e a igreja é
decorada com folhas de palmeira e flores da selva.
Influência
de evangélicos
Em muitas aldeias onde há evangélicos a cultura
indígena é demonizada. Os evangélicos semeiam a discórdia e colocam as
comunidades umas contra as outras. Eles as enfraquecem. De repente, muitos
índios evangélicos rejeitam as antigas tradições de seus povos.
Para Nova Jutaí, a pandemia de covid-19 já passou.
Todas as pessoas com mais de 18 anos foram vacinadas. Os nativos brasileiros
tiveram prioridade na campanha de vacinação, e a Sesai fez um trabalho muito
bom e ágil na região do Alto Solimões.
Houve problemas, porém, em aldeias com forte
influencia evangélica. Muitos indígenas evangélicos se negaram a ser vacinados
porque ouviram dos pastores (e do presidente do Brasil) que a vacinação era
perigosa. Foi isso que vi na aldeia Sapotal, no rio Solimões. Lá vivem os
índios kokama, cuja cultura já está enfraquecida.
A coesão social em Sapotal é frágil, ninguém mais fala
kokama. Pelo menos três homens morreram de covid-19, após terem ido à cidade de
Tabatinga (AM), onde foram infectados. Entre eles estava o vice-cacique e
fundador da Igreja Evangélica de Sapotal. Eu conheci seu filho. Apesar do
destino do pai, ele não quer ser vacinado pela Sesai.
Já em Nova Jutaí, as coisas voltaram ao normal. As
pessoas trabalham e também retornam ao convívio social.
Imagino o que teria acontecido se as condições em Nova
Jutaí fossem iguais às do resto do Brasil: se a aldeia tivesse um cacique que
dissesse às pessoas que não precisam levar o coronavírus a sério, que não
precisam usar máscaras, que podem continuar a se reunir e que não precisam ser
vacinadas.
Teria havido mortes em Nova Jutaí, e a aldeia ainda
estaria lutando contra o vírus. A vida econômica continuaria paralisada, e as
pessoas, inseguras. Felizmente, o cacique de Nova Jutaí é um homem mais
inteligente que o presidente da República.
Um chá milagroso?
Outra coisa me chamou atenção durante a viagem: em
todas as aldeias que visitei, as pessoas falavam de um chá feito de jambu,
limão, alho e mel que supostamente alivia a tosse e as dificuldades
respiratórias de pacientes com covid-19.
Essa história eu ouvi não apenas uma, mas uma dezena
de vezes. Ela me foi contada por vários pajés, assim como por pessoas que
ficaram gravemente adoecidas. E foi também confirmada pelo coordenador do Polo
Base da Sesai em Belém do Solimões, que afirma que o chá de jambu já ajudou
muitos doentes. Parece que agora o instituto de pesquisas da Fiocruz quer
analisar a erva mais de perto.
Não seria uma bela ironia do destino se descobríssemos
que o jambu ajuda no combate à covid-19? Não a hidroxicloroquina recomendada
pelo presidente Jair Bolsonaro, mas uma erva amazônica. Bolsonaro disse certa
vez: "Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós". Acho que
seria melhor para o Brasil se Bolsonaro virasse cada vez mais um ser humano como
os índios.
Por Philipp Lichterbeck, na Deutsche Welle
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