Projeto de Michelle Bolsonaro perde fôlego depois que Ministério da Cidadania fica impedido de distribuir cestas básicas com dinheiro destinado a indígenas e quilombolas
Em 26 de
março, o prefeito de Aparecida, Luiz Carlos de Siqueira (Podemos), anunciou um
'milagre': a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, estava na cidade do interior de
São Paulo para a cerimônia de lançamento do Brasil Fraterno, projeto de
distribuição de alimentos a pessoas em situação de insegurança alimentar. Na
cerimônia, transmitida ao vivo pela tevê oficial, o prefeito, mais conhecido
pelo apelido Periquito, saudou o 'coração misericordioso' do ministro da
Cidadania, João Roma. Aparecida seria a primeira cidade beneficiada pela
distribuição emergencial de alimentos do Brasil Fraterno. Nas semanas
seguintes, mais de 2.300 municípios enviaram ao Ministério da Cidadania pedidos
que ultrapassavam 8,7 milhões de cestas. Os prefeitos foram estimulados por uma
portaria editada pelo ministro João Roma em 22 de março, às vésperas da
cerimônia em Aparecida, que ampliava a distribuição de alimentos para
localidades em situação de emergência e calamidade pública por causa da
pandemia.
Um mês depois da cerimônia em Aparecida, o 'milagre' da distribuição de cestas
básicas ficou restrito ao município. Apesar do que o governo alardeou, o único
dinheiro público de que o ministério dispunha para as cestas já estava destinado
legalmente a indígenas, quilombolas, extrativistas e pescadores, conhecidos
como povos e comunidades tradicionais. Eram eles os beneficiários da medida
provisória 1.008, editada em outubro de 2020, quando o governo foi cobrado por
decisões da Justiça a distribuir cestas básicas a essas populações. A MP
destinou um crédito extraordinário de 228 milhões de reais à compra de
alimentos para mais de 600 mil famílias desses povos e comunidades
tradicionais. Uma fatia de 193 milhões de reais (84% do crédito total) foi
transferida à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que, cinco meses
depois, começou a distribuir quatro cestas básicas a um número menor de
famílias (424 mil).
O governo queria usar a 'sobra' de 35 milhões de reais da MP para beneficiar
outros públicos do Brasil Fraterno. Queria, mas não pôde, por restrições
legais: a MP destina o dinheiro especificamente aos povos tradicionais, e a
portaria editada pelo ministro João Roma não poderia alterar o destino do
dinheiro. 'Créditos que tenham sido editados e não gastos ou gastos
parcialmente não podem ser realocados livremente, o Tribunal de Contas da União já
decidiu sobre isso', comenta Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição
Fiscal Independente, ligada ao Senado.
O Brasil Fraterno, projeto pensado para ser uma das principais marcas do
Ministério da Cidadania, contaria com dinheiro de 'créditos extraordinários' e
uma outra dotação também destinada originalmente a povos e comunidades
tradicionais, de número 2792 - foi ela que pagou as cestas de Aparecida.
O lançamento do programa teve a marca do improviso. Vencedora de um leilão
promovido pelo Ministério da Cidadania em fevereiro, a empresa A Popular, de
Contagem (MG), foi chamada a entregar às pressas 2.546 cestas básicas em
Aparecida. 'Foi um pedido em caráter de urgência, carregamos uma carreta e um
caminhão à noite', contou à piauí o dono da empresa, Gilberto Teixeira Bueno,
sobre a entrega. Cinco dias depois da cerimônia, o ministério contratou da
mesma empresa mais 35 milhões de reais em cestas básicas, com o saldo
remanescente da medida provisória 1.008.
Questionado pela piauí, o Ministério Público Federal reiterou que os gastos
extraordinários autorizados pela medida provisória 1.008 se destinam
exclusivamente à compra e distribuição de alimentos a povos e comunidades
tradicionais, 'sob pena de não atendimento das ações judiciais, com o
consequente pagamento de multas diárias pela União'. A Sexta Câmara de
Coordenação e Revisão do MPF, que trata de temas indígenas e povos tradicionais,
acompanha o destino do dinheiro. Os valores pagos até aqui revelam o ritmo
lento da chegada das cestas às populações tradicionais.
Pesquisa divulgada no início de abril mostra que 19 milhões de brasileiros
passaram a conviver com a fome no final de 2020. Isso representa 9% da
população do país. Intitulado 'Inquérito nacional sobre insegurança alimentar
no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil', o estudo identificou na área
rural o maior número de brasileiros em situação mais grave de insegurança alimentar.
Contando também as cidades, a conclusão é de que mais de metade dos domicílios
brasileiros (55%) já sofria com a falta de alimentos suficientes, num período
em que ainda era pago o auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais mensais.
O tamanho da amostra da pesquisa não permitiu detalhar a situação de populações
indígenas e quilombolas, mais isoladas, que já registravam vulnerabilidade
maior em pesquisas anteriores do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística). Ana Segall, coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN), responsável pelo
levantamento recente, notou a rapidez do retrocesso na segurança alimentar,
causado não apenas pela pandemia, mas pelo desmonte de políticas públicas na
área social. O Brasil havia deixado, em 2014, o mapa da fome das Nações Unidas.
A fome não é exclusividade de indígenas, mas são eles os mais vulneráveis à
pandemia. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) registrou até 26
de abril a morte de 1.048 indígenas em decorrência da Covid-19 entre quase 53
mil contaminados. Artigo publicado neste mês pela revista científica Frontiers
in Psychiatry identificou entre indígenas uma incidência 136% maior da doença e
uma taxa de mortalidade 110% maior em relação à média nacional. O artigo chama
a atenção para a subnotificação de casos pelo Ministério da Saúde.
'Voltamos uns quinze anos no tempo', calcula Cassimiro Tapeba, coordenador da
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo (Apoinme), que reúne cerca de setenta povos indígenas. 'Tem
gente passando fome mesmo', disse. As cestas distribuídas recentemente pelo
governo ao povo Pankararu, em Pernambuco, não foram suficientes para todas as
famílias que precisavam, conta Alexandre Pankararu, que também integra a
Apoinme.
A Conab fará no final deste mês o primeiro balanço da distribuição de cestas
básicas a povos e comunidades tradicionais, cujos gastos foram autorizados em
outubro passado pela MP. O Tesouro Nacional registra o pagamento, até o
momento, do equivalente a apenas 0,2% do valor total de 193 milhões repassado à
empresa. Sem calendário previamente definido, a Conab informou que entregará
cestas de alimentos a 424.167 famílias indígenas, quilombolas, extrativistas e
de pescadores.
O número de famílias de povos e comunidades tradicionais que receberão cestas
da Conab é 31% menor que o total estimado em exposição de motivos assinada pelo
ministro da Economia, Paulo Guedes, de 612.234 famílias. O documento acompanhou
o pedido de autorização extra de gastos de 228 milhões de reais em outubro. Os
gastos são pagos com a emissão de títulos da dívida pública.
Um mês depois de seu lançamento, o Brasil Fraterno perdeu fôlego. Sem verba
para atender aos pedidos de prefeituras por cestas básicas, o ministério usou a
marca do Brasil Fraterno para distribuir as que fora obrigado a comprar antes
mesmo do lançamento do projeto. Foi o que aconteceu na sexta-feira, 23, quando
o ministro João Roma participou de uma entrega simbólica de alimentos em
Manaus, ao lado do presidente Jair Bolsonaro. 'Esses mantimentos essenciais se
somam a uma série de iniciativas que mostram que o governo federal não foi
omisso durante o período de pandemia', discursou.
Vencedora do leilão de 150 milhões de reais para a compra de cestas básicas
pelo Ministério da Cidadania, a empresa A Popular só fechou contratos para a
entrega de Aparecida e a compra de 35 milhões de reais de cestas básicas
destinadas a povos e comunidades tradicionais. Desse montante, a empresa enviou
para cinco cidades do Amazonas e para Belém, no Pará, mais 35 mil cestas
básicas, que se somaram às cestas compradas pela Conab nos eventos da
sexta-feira, 23, a primeira a usar a marca do Brasil Fraterno depois de
Aparecida.
Novos contratos com base nesse leilão contavam com emendas parlamentares de 80
milhões de reais para a ação também destinada a povos tradicionais. Mas o veto
de Bolsonaro secou essa fonte.
'Eu tenho fé de que, dessa forma, conseguiremos combater os efeitos da
pandemia', discursou Michelle Bolsonaro durante a cerimônia de lançamento do
Brasil Fraterno, referindo-se à rede de solidariedade que pretendia mobilizar
para a distribuição de alimentos, financiada em parte com dinheiro público. Na
internet, a página do programa Pátria Voluntária, comandado por Michelle, não
mostra interessados em aderir às campanhas pontuais de doação de cestas básicas
realizadas pelo projeto durante a pandemia. O Ministério da Cidadania conta com
doações de entidades do Sistema S e empresariais para levar adiante a
iniciativa.
O ministério foi procurado desde o início de abril para tratar da compra de
cestas básicas. Inicialmente explicou que o ministro editara uma portaria para
ampliar o público alvo da distribuição de alimentos, e que Aparecida seria o
primeiro município a se beneficiar. Na ocasião mencionou o 'saldo remanescente'
da medida provisória 1.008 - que depois afirmou que só poderia ser usado na
compra de cestas básicas para povos tradicionais. Na última sexta-feira, informou
que o Brasil Fraterno passou a denominar toda e qualquer distribuição de
alimentos, inclusive a indígenas e quilombolas.
Por Marta Salomon, na Revista Piauí
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