Savana branca em meio a floresta — Foto: Bernardo Flores/Arquivo pessoal |
As inundações sazonais afetam grandes áreas das florestas da Bacia Amazônica e, durante a estação da seca, as áreas estão sujeitas a incêndios.
As savanas nativas, compostas de areia branca, estão se expandindo no
interior dos ecossistemas inundados sazonalmente no Centro da Amazônia em
consequência dos recorrentes incêndios florestais. Usando imagens de satélite
com trabalho de campo sobre vegetação e solos em áreas queimadas, uma pesquisa
realizada pelo pós-doutorando em ecologia na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) Bernardo Monteiro Flores e por Milena Holmgren, professora do
Departamento de Ciências Ambientais da Wageningen University, na Holanda,
mostram como o aumento e a repetição do fogo estão mudando essas áreas das
florestas da bacia. O estudo durou cerca de três anos.
Na Amazônia, estudos recentes mostraram que as florestas inundadas
sazonalmente são particularmente vulneráveis a incêndios florestais. O aumento e a repetição do fogo acabam provocando erosão da camada
superficial do solo. Os fatos acabam favorecendo a transformação dos solos
ricos em argila em solos de areia branca, que colaboram para o crescimento de
espécies arbóreas de savana.
O estudo, que foi publicado no periódico Ecosystems e recebeu o apoio da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), traz o resultado
da avaliação da composição do solo e das espécies de árvores após os incêndios
florestais. As análises envolvem imagens de satélite de 40 anos (1973–2014) da
história dos incêndios florestais.
Além disso, também foram feitos trabalhos de campo em 21 locais, incluindo
15 florestas queimadas, três florestas não queimadas e três savanas de areia
branca, para avaliar as mudanças nas propriedades do solo, cobertura herbácea e
composição de espécies de árvores.
Os pesquisadores estudaram paisagens de várzea no médio Rio Negro, onde a
inundação está associada principalmente a rios de águas negras, pobres em
nutrientes, formando ecossistemas conhecidos como igapó. Apesar da baixa
disponibilidade de nutrientes nessas planícies de inundação, as florestas
atingem alta biomassa. As várzeas dessa região cobrem uma área de 4100 km².
O pesquisador Bernardo Flores contou que os incêndio podem provocar
mudanças além das partes periféricas da floresta. "Normalmente se
considera que a floresta amazônica está sob ameaça nas áreas periféricas da
bacia, principalmente ao Sul, onde a fronteira agrícola avança causando
desmatamento e degradação florestal. Porém, nós observamos que em regiões
remotas (no caso no Médio Rio Negro), longe de grandes áreas agrícolas,
florestas estão se transformando em outro tipo de vegetação depois de repetidos
incêndios", explicou.
O fogo geralmente é causado por ação humana, segundo Flores.
"Esses incêndios são sempre iniciados por humanos que viajam pelos
rios da região, geralmente em atividades extrativistas ou pesca. Quando o clima
está muito seco, como ocorre nos anos de El Niño, incêndios podem se espalhar
pela paisagem. Em geral, na nossa região do estudo, pessoas deixam para trás
fogueiras mal apagadas, que podem iniciar incêndios florestais de dezenas ou
centenas de hectares. As florestas de igapó passam metade do ano inundadas, mas
quando secam, elas são surpreendentemente inflamáveis", disse.
Em cada um dos 21 locais de estudo, foi coletado solo superficial, trazido
para Manaus para ser analisado no Laboratório de Plantas
e Solos (LTSP) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e
também amostras foram no Stable Isotope Facility da University of California
(UCDavis), EUA. Também foram feitas medições e identificações das árvores.
Mudanças pós-fogo
Para verificar as alterações causadas pelos incêndios, os pesquisadores
procuraram entender a ordem dos eventos. "O mapeamento de florestas
queimadas nos permitiu fazer uma cronologia, ou seja, organizamos as áreas pela
data em que elas queimaram pela primeira vez. Aí, usamos essa cronologia para
entender as mudanças que supostamente aconteceram ao longo do tempo",
explicou Bernardo Flores.
Os pesquisadores concluíram que houve muitas alterações na flora.
"Vimos que as espécies de árvores normalmente abundantes em florestas
desaparecem com o primeiro fogo, e são substituídas por espécies de árvores
pioneiras, essas que se dão bem em áreas queimadas ou perturbadas por outros
motivos. Depois do segundo incêndio, espécies que normalmente ocorrem em
savanas de areia branca começam a aparecer e dominar o local. Ao mesmo tempo, o
solo desses locais também muda de argiloso, como ocorre nas florestas, para
arenoso, como se observa nas savanas", disse.
Um grande problema para a recuperação das áreas atingidas por incêndio é
que elas têm mais chances de sofrerem novamente com a ação do fogo. "Vimos
que áreas queimadas apenas uma vez podem recuperar, mas, porque recuperam
lentamente, elas ficam muito tempo com uma estrutura aberta, suscetível ao
fogo. No Médio Rio Negro, vimos que metade das florestas queimadas uma vez
queimam novamente. Nesses locais, as florestas dificilmente recuperam e em cerca
de 40 anos, elas podem se transformar em savanas de areia branca".
Segundo Flores, nos 40 anos anteriores a 2015, a área total de florestas
queimadas foi inferior a 10 mil hectares. "Porém, no começo de 2016,
durante o El Niño mais forte dos últimos 100 anos, observamos uma área de
floresta queimada maior que 70 mil hectares. Portanto, em apenas um ano queimou
uma área sete vezes maior que toda a área queimada em 40 anos, indicando um
aumento abrupto no risco de grandes incêndios", disse.
Risco para a biodiversidade
Conforme o pesquisador, as savanas de areia branca se expandiram e
retraíram na paisagem dominada por florestas. Elas são como "ilhas"
cercadas pelo verde. "Os povos indígenas e ribeirinhos contribuíram com
essa dinâmica através do manejo do fogo, principalmente porque essas savanas
são úteis. Elas possuem recursos importantes, como plantas e animais, e também
são áreas de descanso durante longas viagens", explicou.
Porém, mudanças climáticas podem ter desestabilizado esse equilíbrio
milenar, fazendo com que incêndios queimem áreas muito maiores do que
antigamente.
"Se o clima mudar e secas extremas como a de 2016 se tornarem comuns,
a área de savanas pode aumentar muito, causando impactos negativos à
biodiversidade e aos ecossistemas, e consequentemente afetando os povos locais
que dependem dos recursos da natureza. Além disso, haveria um aumento nas
emissões de gazes de efeito estufa (gás carbônico e metano), pela combustão das
florestas e turfeiras (áreas com enorme estoque de carbono sob o solo),
acelerando o aquecimento global", alertou.
Para evitar um futuro pior para a natureza, Bernardo Flores afirmou que é
preciso evitar que incêndios ocorream quando há secas extremas.
"Precisamos de esforços por parte de vários atores da governança dessas
paisagens, incluindo os governos, as empresas que atuam na pesca e cadeias de
produtos do extrativismo, e principalmente a participação dos povos locais.
Sistemas de monitoramento por satélite do risco de incêndios, conectados a um
sistema de alerta que alcance regiões remotas da Amazônia podem contribuir para
reduzir incêndios".
"O fogo é uma ferramenta essencial nessas regiões para o manejo da
terra e da paisagem, e as pessoas precisam ter o direito de usá-lo. Porém,
apenas durante os meses críticos em que o clima está muito seco, o fogo precisa
ser controlado para evitar esses megaincêndios e a expansão de enormes áreas de
savana sobre a floresta", finalizou.
Por Anaísa
Catucci, G1 SC
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