quarta-feira, 21 de abril de 2021

'Quis mostrar o que é sobreviver a um genocídio', diz diretora bósnia indicada ao Oscar

 


Jasmila Zbanic fala ao G1 do cuidado ao expor massacre de 1995 no filme 'Quo vadis, Aida?': 'Não quero que negacionistas do genocídio falem: ela cometeu um erro, a história é fake.'

 

Jasmila Zbanic tinha 21 anos e morava em Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, quando aconteceu o último genocídio europeu: o massacre de Srebrenica, em 1995. Ao menos 8 mil bósnios foram tirados de um abrigo da ONU e assassinados pelo exército sérvio.

Duas décadas e meia depois, a cineasta bósnia mostra a agonia de viver um genocídio em câmera lenta em "Quo vadis, Aida?", indicado ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. O filme estreia em plataformas pagas de streaming no Brasil nesta terça-feira (20).

O longa mostra o desespero de uma mãe para salvar a família do fuzilamento. A personagem é ficcional, mas o drama tem como cenário o registro histórico de como oficiais das Nações Unidas (ONU) foram omissos com o massacre.

"Não queria que um europeu visse e pensasse: 'Isso nunca vai acontecer comigo'. Não é verdade. Pode acontecer com qualquer um se o contexto permitir", diz a diretora e roteirista ao G1.

Jasmila ressalta o cuidado que teve para não errar nenhum fato histórico. "Não quero que os negacionistas do genocídio falem: olha só, ela cometeu um erro aqui, essa história toda de Srebrenica é fake", ela explica. "Até agora eles não conseguiram achar nenhum erro", comemora.

Por fim, a diretora fala sobre a alegria que a indicação do filme ao Oscar levou para as mães que sobreviveram ao genocídio e buscam até hoje os corpos de seus filhos. "Elas sentem que o trauma delas foi reconhecido e alguém se importa". Leia a conversa completa abaixo:

G1 - Quando você começou a escrever o roteiro e quanto tempo levou?

Jasmila Zbanic - Pensava no filme havia muito tempo, mas cinco anos atrás achei um livro chamado “Under the UN flag”, de Hasan Nuhanovic. Ele era um tradutor que testemunhou tudo e teve que traduzir para a família dele: “Agora vocês têm que sair do abrigo”. Quando li o livro, percebi como as pessoas poderiam ter sido resgatadas se a ONU estivesse pensando e agindo de outro jeito. Aí comprei os direitos do livro e tentei adaptar.

O aspecto político foi muito interessante. Srebrenica foi abandonada muito antes de 11 de julho de 1995. Foi uma decisão política dos EUA, França e Grã-Bretanha de terminar a guerra da Bósnia em 1995. Eles fizeram um acordo com Milosevic, que era presidente da Sérvia, e deram a ele o Leste da Bósnia. Eles impediram a ONU de reagir.

Então pensei que seria um thriller político incrível, eu queria fazer as pessoas sentirem de verdade como é sobreviver a um genocídio, estar lá, ter seus filhos mortos, que foi a situação de tantas mulheres na Bósnia.

Decidi seguir por essa história humana. Eu queria muito dar ao público a oportunidade de se identificar com aquela personagem bósnia, a mulher que estava tentando resgatar sua família. Em um momento pensei em seguir a história de Hassan Muhanovic, mas era difícil ter esse aspecto de família. Então criei essa personagem mulher que está protegendo seus filhos.

Era muito importante para mim as pessoas entenderem que também podem estar nessa situação se as circunstâncias mudarem. Não queria que algum europeu assistisse e pensasse: 'Ah, isso nunca vai acontecer comigo'. Não é verdade. Pode acontecer com qualquer um se o contexto permitir.

Então foi um processo que gastou várias versões do roteiro até o formato final. Eu ainda mudava durante os ensaios, durante a filmagem. Embora durante a filmagem não desse para mudar muito porque a gente só tinha 42 dias para mostrar essas coisas complicadas. Então a gente teve que ser preciso.

Mas para mim o roteiro é um corpo que vive e muda com o tempo, e meu objetivo era que o público estivesse o mais próximo possível da Aida e pensasse nas decisões, no que eles fariam no lugar dela.

G1 - Você e a equipe fizeram parte dessa história de certa forma, pois viviam no país durante a guerra. O quão intensa foi a filmagem para vocês?

Jasmila Zbanic - A gente não vivia em Srebrenica, que teve um destino diferente de Sarajevo, por exemplo, onde eu vivia. Mas Sarajevo também foi cercada, a gente não podia sair nem entrar. Em certo momento tinha um túnel sob o aeroporto e foi assim que as pessoas começaram a sair e entrar. E foi assim que a comida chegou, porque a gente não tinha comida, eletricidade, gás, nada.

Então eu tive a experiência da guerra, mas não a experiência de Srebrenica. Eu tive que fazer muita pesquisa e conversar muito.

Emocionalmente foi difícil. Às vezes eu pensava: "Acho que eu devia fazer comédia". Fugir dessas histórias muito intensas, humanas e reais.

Por outro lado, é uma história não contada, e essas mulheres querem que as pessoas saibam o que aconteceu, que tenham reconhecimento. Isso me fazia sempre esquecer minhas questões emocionais e continuar. Mas houve muitas situações em que eu quase desisti. Foi muito, muito difícil.

G1 - Você vivia em Sarajevo na época em que o massacre aconteceu. Antes disso, vocês se sentiam seguros com as instituições nacionais e internacionais? Achavam que as instituições iriam impedir que isso acontecesse?

Jasmila Zbanic - Srebrenica foi atacada fortemente em 1992. E teve um momento em que a ONU decidiu que a cidade seria uma "zona segura". E desde então não houve ataques. Havia incidentes, tentativas do exército da Sérvia. Mas a ONU, por negociações ou outros meios, conseguia parar.

Então eu pensei: “ok, não está funcionando perfeitamente, mas está funcionando de alguma forma. E a ONU está protegendo Srebrenica.” Eu estava preocupada com outras cidades na Bósnia que não tinham essa proteção da ONU. Elas estavam em uma situação péssima.

Eu sabia que os políticos que estavam lidando com a guerra da Bósnia e a ONU estavam sob enorme pressão de interesses diferentes. Como a Rússia, que estava por trás de decisões de políticos da Sérvia. Os EUA eram contra. Então essas grandes potências estavam brigando através desse país pequeno e pobre.

Eu sabia que não há justiça perfeita no mundo, mas que a ONU pudesse nos trair tanto eu não sabia. Aprendi isso em 11 de julho de 1995.

Não digo nunca que a ONU é uma instituição corrupta que deveria ser fechada. Eu sempre digo que quero que a ONU exista, porque é uma grande ideia de colocar todas as nações juntas, mas a gente tem que achar um jeito de as instituições que protegem os direitos humanos se importarem realmente com as pessoas, e não interesses políticos, lucros, eleições de alguns presidentes.

G1 - O massacre foi classificado como genocídio no Tribunal de Haia em 2004. Qual é a importância de ter essa declaração oficial de genocídio?

Jasmila Zbanic - Acho que é muito importante. Porque o genocídio é planejado. Há uma intenção de matar. Não é só um soldado louco que pratica um massacre. Um fato muito importante é que foi planejado por anos, e o plano era que toda a nação fosse exterminada.

G1 - Qual foi a reação na Bósnia quando você lançou o filme? Sei que deve ter sido diferente para cada grupo, mas como foi?

Jasmila Zbanic - Eu queria muito que não houvesse essa divisão. Tipo "os sérvios não vão gostar do filme, os bósnios vão gostar". E eu não queria que partidos políticos usassem meu filme nos seus próprios interesses. Então eu e minha equipe pensamos muito em como não ter essas narrativas na mídia.

A gente decidiu fazer o lançamento do filme só para jovens da Sérvia, Croácia e Bósnia. A gente falou para eles - e divulgou isso para toda a mídia - que não há nações culpadas pelo genocídio. Especialmente para as pessoas novas nascidas depois de 1995.

Ninguém deveria acusar um garoto sérvio porque Mladić (general sérvio condenado em Haia) cometeu esse genocídio. Isso é muito importante para nossa região. O que esses criminosos de guerra e seus apoiadores fazem é colocar a sua própria culpa no país inteiro. E desse jeito eles fazem o país prisioneiro de seus interesses e seus lucros.

Foi um trabalho grande lançar esse filme como uma história humana totalmente independente que pede por empatia e solidariedade. E funcionou muito bem, porque a gente teve uma cobertura de imprensa muito boa na Sérvia.

Claro que veículos do governo e de extrema-direita falaram coisas ruins e bobagens, mesmo sem ver o filme, eles escreveram resenhas antes de assistirem. Mas todos os outros entenderam que a minha intenção não era dividir as pessoas.

Eu odeio essa generalização: se você é sérvio você vai pensar desse jeito. Se é croata, vai pensar de outro. Acho que é muito perigoso e é isso os políticos querem: dividir a gente assim.

Fico feliz com as reações, mesmo pequenas. Quando digo que tenho uma ótima respostas de jovens sérvios, estou falando de dez, quinze pessoas que escrevem para mim no Instagram dizendo: "A gente amou seu filme, essa narrativa que a gente aprendeu na escola e na mídia sobre Srebrenica parecia ter tinha alguma coisa errada, obrigado por abrir meus olhos”. Para mim isso é um grande passo.

G1 - Qual é, no fim das contas, a importância de investigar um genocídio, relembrar como foi e mostrar para outras pessoas no filme a forma como ele aconteceu?

Jasmila Zbanic - Para mim era muito importante ser o mais precisa possível com os fatos. Por causa dessa negação. Não quero que os negacionistas do genocídio falem: olha só, ela cometeu um erro aqui, essa história toda de Srebrenica é fake.

Eu realmente queria tudo certo e chequei todos os fatos várias vezes. O filme é uma ficção, mas todos os fatos são importantes para a personagem principal. Até agora todos os críticos da direita não conseguiram achar nenhum erro no filme.

Porque, em especial para os jovens, é muito difícil ler todos esses documentos, leva anos. Eu fui responsável o suficiente para dizer: eles vão ver o filme e entender o que aconteceu.

G1 - Aqui no Brasil uma indicação ao Oscar causa uma comoção nacional. Como foi a reação aí na Bósnia quando saiu sua indicação?

Jasmila Zbanic - Como eu disse, tem uma extrema-direita reclamando, mas a maioria das pessoas está muito, muito feliz. Não é só orgulho nacional. Talvez com outro filme a gente sinta só orgulho. Mas aqui o principal é que os sobreviventes e vítimas sentem que o trauma deles foi reconhecido, que alguém se importa com eles.

As pessoas aprendem com o filme em lugares que a gente não imaginava. Eu vou ligar para as Mães de Srebrenica e dizer: eu falei com pessoas no Brasil sobre o que aconteceu. Elas sempre choram, porque para elas é muito importante que as pessoas pelo menos saibam o que aconteceu.

É uma coisa pequena, mas para elas é enorme. Ainda há mil corpos de vítimas desaparecidos. Eles ainda estão escondidos em algum lugar em valas comuns. A vida de muitas mulheres é achar esses corpos. Esse filme é para elas, e é mais que um filme.

Por Rodrigo Ortega, G1


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